quarta-feira, 14 de outubro de 2009

The Past

Era noite, e no frio de minha cidade natal eu me arrisquei a percorrer só o pequeno trecho entre a casa de minha tia e a casa de minha mãe – onde eu estava hospedada.
Caminhei tranqüila, porquanto havia lâmpadas acesas nos velhos postes da primeira rua. Segui para a segunda rua, consideravelmente menos iluminada que a primeira, onde o gélido vento alcançou a minha espinha, trazendo assim o medo. Adentrei numa escuridão – que assomada ao medo – causou-me terror capaz de me fazer, creio eu, ver seres de estranhas anomalias.
Eu tinha três opções, três caminhos a seguir – não levando em conta o destino para onde eu deveria ir.
A rua à direita, o primeiro caminho, era a mais clara e nem por isso a mais desejável. Era calma, muda e morta. Havia nela seres sisudos, sentados nas varandas das casas com os cotovelos sobre os joelhos cansados. Ao lado de cada ser (idosos rabugentos), no chão, um copo simples de alumínio. Estes copos eram portais, e podiam-se ouvir vozes dementes provindo deles.
O segundo caminho foi o que mais me causou ânsia e repulsa, a fétida rua em frente. Havia duas casas nela e seu fim não podia ser visto devido à abismal escuridão. Vi seres que voavam - homens-demônios. Vestiam capas pretas de um tecido fantasmagórico. Eles debochavam e gargalhavam blasfemando contra Deus, cuspindo infâmias, cheios de orgulho. Rastejando no chão pedregoso, estavam as mulheres, nuas e ensangüentadas com seus bebes prematuros no colo, filhos mortos da rebeldia e prostituição. Suas mães, abandonadas ou sozinhas por escolha, rasgavam suas gargantas implorando por amparo, mas ninguém as ouvia. Desespero.
Estas visões pareciam me puxar, e com algum esforço consegui deixá-las.
Volvi meu olhar para o terceiro caminho, a rua à esquerda. Nela pude sentir mais forte o vento, e a cada passo era como se eu estivesse indo em direção a sua origem. Assustei-me mais quando ouvi claramente uma voz, era o vento me perguntando “você resiste a tudo isso novamente?”, então fui levada ao meu passado. Revivi todo o sofrimento de outrora, porém desta vez convertido de mental para físico. Chorei lágrimas de sangue enquanto minhas velhas cicatrizes reviviam mais dolorosas. Ah se me pudessem ver! Meu corpo terrivelmente corroído pelas chagas.
Para completar meu pesar, avistei pessoas de meu convívio. Falavam de coisas vãs e compartilhavam com demônios os meus segredos. Ergui-me perante eles com a intensidade do meu ódio visível em meus olhos maçantes, vomitei com veemência duas palavras que fizeram cair fogo do céu, eram elas “macula aeternitatis” ou “desgraça pela eternidade”.
E quando já não mais os via, seres desprezíveis mergulhados em sangue, percebi que eram todos aqueles a qual me fizeram sofrer. Por um momento senti alívio, por outro indolência. Desta forma repugnante e pesarosa havia eu descoberto que quem amei e perdoei traiu-me. Não encontrei, então, mais forças em meu majestoso e medíocre coração de pedra.
Em minha frente uma voragem precipitou-se a devorar-me. Caí no chão, indefesa e apavorada, arrastando comigo minha perturbação. Era o meu fim, bastava consumir-se minha alma em tal redemoinho infernal. A punição que tanto almejei, depois de anos veio, depois da paz.. o castigo já desnecessário.

3 comentários:

  1. Este é o teu melhor conto. Parabéns.

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  2. Nossa, Micheli!!! A tua narrativa aqui, neste conto, é espetacular!!! A forma como tu desenvolveu cada linha do texto é bastante envolvente. Cada palavra tão bem escolhida, tão intelígivel. O conto não apenas envolve, ele transporta o leitor para dentro da tua imaginação, nos colocando dentro desse cenário criado por ti. Só grandes escritores conseguem fazer algo assim. Olha que maravilha ver o teu talento desabrochando mais e mais!!! :D

    Concordo com os guris: é o teu melhor conto até agora. Só fico imaginando o que vai vir daqui para a frente!!!

    Putz!!!! Parabéns!!!! Beijos!!

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